Desdobramento

Mulher com véu fotografada por Clérambault

Mulher com véu fotografada por Clérambault

Este blog foi aberto com um texto que chamei de Lançamento. Um lançamento a um espaço de abertura, criação, de escrita. Escrita com corpo. Para isso, propûs, então, que os seguintes elementos acompanhassem tal abertura: flores, luz, calor, ânimo, aconchego, menos-pressa, cuidado, a alquimia da cozinha, um certo silêncio para leitura e escrita. Tudo isso fez parte do percurso. Leitores compareceram, o que multiplicou os afetos e produziu amarrações. A escrita foi o motor do blog. Uma escrita acompanhada de leituras e que se apropriava de materiais e suportes variados (papel, tela, imagem) e que parecia estar sempre em processo de abertura. Uma escrita que caminhava incessantemente a um outro lugar. Este movimento de busca permanece. É tecendo o Vestido que tento ler as letras que o compõem.

O blog (neste formato) foi uma passagem. Uma passagem com importantes efeitos. Dentre os principais  destaco a prática da escrita, a pesquisa (em moda e mais) e o diálogo com quem teceu junto o Vestido, deixando as marcas de sua letra. Os efeitos se misturam com os meios. O princípio se mistura com o meio, com o fim. Qual fim? O fim do blog continua sendo uma abertura, um eterno recomeço em busca da diferença.

Para este post de agradecimento a quem me acompanhou nessa passagem, escolhi um tema que também trata de vestir palavras, vestir letras. Trata da vestimenta como uma dobradura que articula a dimensão estética do corpo à sua dimensão pulsional. A psicanalista Izabel Haddad Marques Massara fez uma pesquisa que articula a psicanálise à moda. E é nesse ponto que o texto dela nos interessa, por ressaltar a psicanálise como método de leitura. Recorremos a trechos de um artigo de sua autoria intitulado “Uma mulher no rastro da seda” para esse fechamento-abertura do nosso Vestido de Letras. Izabel cada um tem uma relação particular com seu Vestido.

Agradeço a cada um que contribuiu, generosamente, para a costura deste Vestido e à Izabel, por essa dobradura para o fechamento-abertura. Fim bom é aquele que se deixa abrir.

 

Uma mulher no rastro da seda

 Izabel Haddad Marques Massara*

“Ela se masturba com a seda sem mais devaneios,

como um gourmet solitário saboreando um vinho delicado”

(TISSERON, 1980, p. 9).

 I. Clérambault: médico e artista plástico

Gaetan Gatian de Clérambault foi descrito no livro A história do pensamento psiquiátrico, de Paul Bercherie como um homem de estilo lapidar e encantador, cuja concisão e eficácia produziram um verdadeiro talento de observação analítica. O jovem médico era considerado perspicaz e carismático. Além disso, ao mesmo tempo em que exerceu um fascínio em seus contemporâneos, despertou paixões hostis no grupo de psiquiatras franceses, devido à sua maneira de conduzir seus estudos e sua própria vida (BERCHERIE, 1989, p. 285). Na descrição de Bercherie, e em muitos outros escritos sobre o Dr. Clérambault, pode-se vislumbrar o paradoxo que foi a vida, a obra e a morte desse psiquiatra.

Como médico, ficou famoso entre seus pares por descrever os pacientes que atendia com extrema minúcia. Considerado um excelente clínico, fazia jus aos preceitos da clínica psiquiátrica de sua época: observador atento e minucioso listava com destreza os sintomas psicopatológicos e dissecava, no tempo de uma breve anamnese, a personalidade psíquica de seus pacientes. Descreveu e descobriu a síndrome do automatismo mental – fenômeno ainda hoje reconhecido como peculiar a determinados estados psicóticos – e a erotomania, sintoma que ficou conhecido como “Síndrome de Clérambault”.

Dedicava-se aos pacientes nomeados de desviantes e amorais pelo discurso psiquiátrico de sua época. Vertia uma atração particular por toda espécie de sujeitos que apresentavam certo desregramento afetivo, um tipo de excesso diagnosticado de degenerescência mental. Essa predileção pelo estudo dos exemplares mais curiosos da loucura, fez com que ele dedicasse mais de 30 anos de sua vida ao exame dos vagabundos, prostitutas, delirantes e das vítimas de alucinações que vagavam pela Cidade-Luz. Foi entre essa infinita variedade de tipos psicológicos que ele se deparou com as cleptomaníacas que escandalizavam a moral da sociedade vitoriana parisiense por cultivarem um gozo desmedido pelo roubo dos tecidos. Entre elas, encontrou uma paixão que viria a encarnar uma de suas próprias predileções, o caimento e o efeito tátil dos tecidos moles.

Por caminhos impensáveis Gaetan Gatian de Clérambault acrescentou elementos a sua paixão, alimentando sua sensibilidade artística e sua paixão pelos tecidos. Foi exatamente na metade de sua longa estada no posto de médico da enfermaria da cidade, entre os anos de 1905 e 1934, mais especificamente em agosto de 1914, que irrompeu a Primeira Grande Guerra, e ele foi escalado para servir nos fronts na África. Devido a um acidente que o feriu no ombro, solicitou um período de convalescença em Fez, no Marrocos, protetorado francês na época. Foi então, longe de Paris, que ele pôde dar lugar à sua paixão pelas mulheres e pelos tecidos. Saltou-lhe aos olhos a forma como as mulheres viviam escondidas sobre os convulsivos drapeados das burcas árabes sobre os quais inventavam tipos de amarrações e enlaces inusitados.

Clérambault, que havia escrito, há alguns anos, o artigo para os Arquivos de Antropologia Criminal sobre Marie e as outras pacientes arrebatadas pelas sedas, apaixonou-se pela topologia dos drapeados, por suas dobras e reentrâncias, e iniciou suas observações e estudos sobre a ciência dos drapeados árabes. Esse médico e artista plástico passaria os três anos seguintes de sua vida em Fez, retratando, através de uma máquina fotográfica arcaica, as mulheres e as formas com que arquitetavam suas vestimentas. Haviam muitos elementos presentes num simples drapeado árabe, o modo como cada uma das mulheres os enlaçava ao corpo, tomando de forma única o pedaço de pano, atraiu sua atenção sobremaneira.

Foi a partir da reunião das fotografias selecionadas nessa viagem que surgiu uma coleção de duas mil imagens, que se tornaram, posteriormente, o material para suas aulas sobre o estudo dos drapeados na Escola de Belas Artes de Paris.  Novamente, ele estava diante do objeto de seu encantamento. Mais do que retratar as mulheres, das quais só se via o olhar enquadrado pela burca, ele queria fotografar os tecidos e o contorno que eles tomavam com o movimento produzido a cada gesto corporal.

Em maio de 1919, após o final da guerra, Clérambault volta a Paris onde vivia, e logo retoma seu posto de psiquiatra na delegacia da cidade. Ao voltar da guerra, o efeito de ter vivido três anos distante de suas funções como psiquiatra o fez perceber que seus desejos não se reduziam à carreira psiquiátrica e que desejava compartilhar os deveres de sua profissão com suas predileções artísticas. Juntamente com sua posição de médico-chefe da enfermaria de alienados dá início aos estudos sobre o drapeado clássico árabe e sobre etnofotografia. Em 1924, passa a dividir a função de psiquiatra com o trabalho de ministrar aulas sobre o drapeado antigo e as vestimentas exóticas na escola de Belas Artes.

Ao longo dos anos, percebe-se gradativamente que Clérambault encorajou-se a escrever textos que demonstravam claramente seu interesse pela tecelagem. Ele redigiu artigos notáveis, tais como “Sobre a tecelagem como modo de trabalho para os doentes mentais” (1929) e “Os teares japoneses” (1932) “Os núcleos inclusos atados e as bainhas fistuladas nos drapeados gregos” e “Nota sobre o ofício do tecer entre os chineses”. Nessa mesma época, animado por sua nova carreira como estudioso dos drapeados, proferiu uma palestra à Sociedade de Etnografia de Paris sobre o tema da Classificação do Drapeado Árabe. Nessa época a comunidade médica já não via com bons olhos o caminho tomado por Clérambault.

Como médico e artista, Gaetan Gatian de Clérambault denunciou uma divisão que não era muito natural aos médicos de sua época. Era uma figura curiosa, enigmática e excêntrica, como os pacientes que atendia. Sérge Tisseron, no livro A paixão de um neuropsiquiatra pelos tecidos, chegou a se perguntar se a proximidade entrevista por Clérambault entre seus mais íntimos desejos e certas formas de gozo fetichista estudados pela psiquiatria de sua época, o deixaram reticente em descrever os casos com os quais se deparava na sua clínica, exatamente por não querer saber sobre a patologia que ligava a paixão de alguns homens com os tecidos e sua própria questão. Talvez por isso havia se contentado em descrever o suposto fetichismo por tecidos apenas nas mulheres, algo que nunca conseguiu sistematizar. Entre suas pacientes, Marie Benjamin ganhou maior destaque e importância por ser o último caso atendido que reafirmou os outros três com os quais ele já havia se deparado antes dela.

II. Marie: costureira e louca

Marie Benjamin tinha sete anos quando começou a se apaixonar pelas sedas. Foi o que ela disse aos médicos do Asilo Saint-Anne, onde havia sido internada pela primeira vez. Detalhou que “brincava de papai e mamãe, com uma menina, sobre uma cadeira”, cuja cobertura era de tecido, quando sentiu um gozo inexplicável (BERLINCK, 2009, p. 278). Essa atração pareceu tê-la arrebatado muito precocemente e, a partir daí, passou a se dedicar com frequência à masturbação, solitária ou recíproca, usando pedacinhos da seda. Sobre essa primitiva compulsão, lembrava que se entregava ao onanismo compulsivo, que havia sido deflagrado depois da pitoresca cena com a cadeira. Narrava lembranças muito vivas em relação aos momentos posteriores em que se deparou novamente com o tecido: “Eu me casei para ter um lindo vestido de seda preto, que ficava encorpado. Depois do meu casamento, ainda vestia minhas bonecas; ainda gosto disso. A seda tem um froufrou, um cricri, que me dá prazer” (BERLINCK, 2009, p. 278).

A suposta histérica contava 49 anos no momento em que irrompeu de fato seu sintoma sexual e cleptomaníaco associado à seda. Era tomada de assalto por uma curiosa satisfação que envolvia uma sequência de atos estranhos: furto, exibicionismo e masturbação com o tecido em público. A cena de exibicionismo com a seda denunciava claramente seu ganho secundário, travestido de um apelo muito particular: o de ser vista, e não somente, olhada pelos homens. Era preciso roubar a nesga e dividir com o grande público seu gozo sexual, assim ela se dava a ver. Parecia evidente que essa costureira, nascida na periferia de Paris, demandava, no mínimo, que Clérambault e quem frequentasse as lojas de tecidos, olhassem-na sem entender o que a levava a tamanho desregramento. Seu sintoma estava estruturado sobre um cenário e um contexto no qual ela contracenava com a seda.

No prontuário psiquiátrico, Clérambault descreveu que a paciente padecia de uma doença histérica e de uma forma de fetichismo feminino. No relatório clínico, era possível acompanhar suas impressões sobre os sintomas da paciente, que ele descreveu segundo as categorias psicopatológicas de sua época como: delírio de tocar, paixão pela seda, impulsão cleptomaníaca, amoralidade, e delinquência banal (BERLINK, 2009, p. 278). Apesar de sua paixão sexual arrebatadora pela seda, Marie sofria de uma frigidez confessa em relação aos homens. Ela confidenciou aos médicos em uma das entrevistas: “Eu não me importo com os homens, primeiro porque eles se parecem todos” (BERLINCK, 2009, p. 278). Era curioso que ela apresentasse um sintoma de anestesia sexual em relação aos homens, pois com a seda apresentava-se o oposto. Era como se seu verdadeiro par amoroso fosse esse tecido. O fato de se exibir também demonstrava que ela talvez tivesse compreendido, como uma boa histérica, a essência do pensamento psiquiátrico de sua época. A escola de psiquitria francesa formada somente por homens foi nomeada de psiquiatria do olhar. Era exatamente ao olhar desses homens que Marie se ofertava como objeto para ser admirado.

O médico que apreciava de perto seus objetos de estudo, para melhor descrevê-los, foi arrebatado pela história da paciente que gostava de ser vista. Tal relação erotizada com a seda e mesmo com o próprio olhar, tornou-se um dado relevante para a história clínica da paciente e um atrativo à parte para o próprio Clérambault. Essa paixão dirigida ao tecido deixou o psiquiatra muito intrigado. A atração mórbida por esse objeto e o simples fato de ouvir pronunciar a palavra “seda”, ou ainda representá-la em pensamento, era suficiente, dizia ela, para provocar-lhe uma “ereção das partes sexuais” (BERLINCK, 2009, p. 278). O orgasmo total se produzia no contato e pela fricção da seda contra a região genital. As qualidades agregadas à seda, como a textura, o frescor e a fineza eram muito importantes para a paciente.

 Para essa costureira a seda do vestido devia possuir, no mais alto grau, a qualidade que ela venerava, a saber, a firmeza: “Eu gosto da seda que fica de pé sozinha” (BERLINCK, 2009, p. 281). O tecido não apenas deveria roçar, com delicadeza, a epiderme; mas era preciso ainda que ele tivesse um corpo. Além da maciez superficial, um tipo de energia interna, que lembra o músculo ou qualquer outra tensão parecida com um corpo em trabalho, deveria ser evocada pela seda. Era um fato que Marie procurava na estrutura do tecido da seda um prolongamento do seu próprio corpo. Depois de aposentar as camisas de força espartilhadas, de onde as mulheres de sua época haviam saído recentemente, a seda serviu como uma segunda pele e pareceu cair ao seu sintoma e a seu corpo como uma luva.

Foi assim que, apesar do esmero para detalhar o relato clínico de Marie e de conduzir tais impulsos sexuais da paciente a uma única categoria nosográfica, Clérambault não previu que esbarraria em dificuldades intransponíveis para sua época, devido a dois fatores cruciais. O primeiro deles estava relacionado a uma impossibilidade diagnóstica, pois até então a psiquiatria nunca havia descrito o fetichismo por tecidos em mulheres. Marie apresentava uma espécie muito rara e ainda inclassificável de doença mental. O segundo, e mais importante deles, liga-se às predileções do próprio Clérambault. Vislumbra-se nas entrelinhas da vida do psiquiatra uma possível identificação imaginária com sua paciente em relação à paixão erotizada que tentou ao longo dos anos sublimar com suas aulas sobre os drapeados e suas fotos das burcas árabes. Marie parece ter sido a encarnação mais radical e escandalosa dos desejos mais íntimos que nutria em relação aos tecidos

III. Desdobramento

Paris entre dois tempos: o final do século XIX, ainda marcado pelo pudor da sociedade francesa vitoriana, refletido nos figurinos modelados por estruturas pesadas e avantajadas, encerrando o corpo feminino numa verdadeira fortaleza. O novo tempo de Paris do início do século XX, tomada pelas inovações na arte, na ciência, na psiquiatria, e, sobretudo, no corte simples e leve dos mais novos trajes femininos confeccionados com tecidos finos e leves, caindo suavemente, como uma luva, sobre o corpo das mulheres e sobre a fantasia de alguns homens.

Marie Benjamim, uma paciente psiquiátrica vítima escandalosa de um mal que respondia também pelo nome de “vício” ou “delito”. Uma transeunte que vagava pela cidade à procura de tecidos e que nutria impulsos estranhos pela seda. Uma mulher que viveu à sua maneira as inquietações de sua época, que testemunhou a migração dos véus que confeccionava para suas clientes na tarefa caseira de “trançar e tecer” para as deslumbrantes feiras de Moda de Paris daqueles anos. Nesse mesmo momento, a mulher recatada, arrebatada por um escandaloso sintoma, acometida por uma paixão irrefreada por sedas, passou a roubar o que era o tecido-símbolo do luxo e da elegância. Transformou-se, depois de passar pelo crivo do Dr. Clérambault, numa personagem de prontuários psiquiátricos, artigos de antropologia criminal, e ainda, de filme e livro sobre as curiosidades eróticas do início do século.

O médico, Gaëtan Gatian de Clérambault, artista e cientista, que viveu sob a sombra do olhar frio e austero que a psiquiatria da época lançava sobre a loucura e o excesso feminino, tempo em que a ciência interrogava brutalmente a sexualidade dos loucos e principalmente das mulheres. Foi testemunha de um tempo em que entregar-se às obsessões, pequenas manias ou vícios extravagantes, coincidia com um prazer afrontoso e duramente questionado, por se tratar de um vício egoísta, e uma recusa ao laço com o outro.

A seda, tecido flexível, leve e fino, que contornava o incontornável, dando corpo e pele a cada uma das mulheres recém-saídas de uma armadura de tecidos brocados e armados da época clássica das cortes européias. Fino e eletrizante fio, talismã do tempo da Belle Époque francesa, paixão natural das mulheres que se ocuparam em recriar uma nova imagem para si mesmas. Além disso, na língua francesa, soie, seda, faz homofonia com dois outros termos desta língua: soit e soi, respectivamente, “seja” e “si”. Nas entrelinhas pode-se ouvir “soi même”, “si mesma”, e “soit”, “seja”, verbo ser/existir, no subjuntivo. Tratava-se de fato de criar, de fazer existir de alguma forma, numa sociedade em que as mulheres não tinham muito como existir, uma nova mulher que tomasse seu corpo para si mesma. A seda vestiu com palavras a mulher do novo século. Nos símbolos e signos da língua francesa e nas camadas drapeadas dos vestidos de seda, uma nova versão da feminilidade poderia verdadeiramente existir.

Marie Benjamin e Gaetan Gatian de Clérambault foram personagens complexos que surgiram no desdobrar do século XIX para o século XX, no momento em que a divisão ética e estética que a sociedade vivia passou a ilustrar-se na vida particular de cada um dos homens e mulheres daquele tempo. Figuras que outrora eram apenas entrevistas pelas frestas do pudor de uma época provinciana, tiveram que avançar e tomar a palavra para fazer a difícil confissão daquilo que realmente eram. Marie confessou através de seu sintoma e Clérambault sublimou suas paixões através de seus estudos sobre a arte dos tecidos.

Marie gozou do privilégio de poder ir às ruas lançar o enigma de seu sintoma a todos que quisessem olhar. Clérambault não teve a mesma sorte, pois era um doutor famoso e tinha que manter a pose, transcendendo o seu também irremediável desejo pelos tecidos de forma mais velada e talvez até mesmo mais feminina. Entretanto, um sintoma recalcado durante muito tempo por esse médico alienista fez sua irrupção na forma de um ato abrupto: o suicídio. Esse médico de olhar clínico sofria de sérios transtornos visuais, que progrediram até a cegueira completa. Logo, ao se perceber sem os benefícios de seu melhor sentido, cego, matou-se diante de um espelho, com seu revólver de oficial da primeira guerra mundial. Ao leitor arguto, para além dessa cena anunciada pelos jornais sensacionalistas da época, não é difícil perceber nas entrelinhas a profunda e comovente identificação de Clérambault com a paixão que suas pacientes vertiam pela seda. O espelho no qual ele não podia se ver refletia a imagem delas.

A vida deste neuropsiquiatra francês chegou ao fim, deixando aos que sobreviveram a ele seu derradeiro enigma. Aqueles que foram buscar por vestígios que pudessem explicar sua morte trágica, encontraram entre seus pertences, uma lápide que ele mesmo encomendara em Fez, no Marrocos, vinte anos antes de morrer. Lá havia cravada uma mensagem que contradizia o seu último ato: suicidar-se, cego, em frente a um espelho, símbolo maior da vaidade, olhando-se pela última vez, sem mesmo poder se ver. Na pedra que mandou esculpir para colocar em seu túmulo, um provérbio árabe previne os homens desavisados que não se esqueçam de que a morte abate a todos, até os mais vaidosos:

“Um dia nós acolhemos um visitante

– Nos lembramos do assalto da Morte –

 Não sejas vaidoso

Pois quantos daqueles que gozavam de uma boa saúde

E a quem parecia que nada podia atingir

Foram assim mesmo tragados pela sepultura

Passe tua vida devotado a Deus

E Ele te oferecerá uma vida de beatitude

E você será preservado de um fim decadente.”

(TISSERON, 1980, p. 65).

* Izabel Haddad Marques Massara é  psicanalista, doutoranda em psicologia pela UFMG. Interessa-se pelo tema da feminilidade na psicanálise e possíveis interlocuções do assunto com o campo da arte, moda e literatura. Contato: izabelhaddad@hotmail.com

Vestido de folhas,
Vestido de letras

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Prossigamos com a nossa semana dedicada aos vestidos. Ao invés de pedir habituais e formais desculpas pelo sumiço nos últimos dias, ressalto que nosso compromisso não é com o relógio (com o tempo cronológico), mas com um certo desejo de escrita e refinamento da letra para os quais há um tempo outro, incerto.

O que está em causa, agora, especificamente, são os vestidos e a natureza. Passamos pelo traço de Gauguin, pelo seu desejo de conhecer o essencialmente natural. Mas antes mesmo que nos voltássemos para a obra deste pintor, a querida Lília Lima – cujo olhar tem sido preciso na leitura e na conjunta feitura da trama do nosso Vestido -, enviou-me algumas fotos de um projeto delicado que me capturou: Fashion in Leaves. Moda em folhas, Moda nas folhas. Indo além, podemos escutar no “leaves” (a princípio, “folha” na forma plural), o verbo “leave” (partir, conjugado na terceira pessoa do singular). Sobra uma preposição (in), mas, deixando-a de lado, temos “Fashion Leaves”. A moda parte.

Em Fashion in Leaves, Tang Chiew Ling, artista/designer da Malásia, se pergunta: é possível fazer moda com folhas? A artista se coloca esta questão a partir de sua prática, na qual explora diversos materiais para fazer poesia. Ling catou no jardim as folhas desperdiçadas pelas árvores e passou a tecer vestidos. Olhou para as folhas querendo lê-las, buscando nelas beleza, possibilidades. Encontrou diferentes formas, rugosidades, linhas, tons, variações. A partir disso, tendo como foco a elegância, ela teceu vestidos que se transformam com o tempo. Tecidos que mudam de cor/tom com o passar das horas. Por fim, ela desenhou partes de corpos de mulheres e, assim, vestiu a natureza de feminilidade.

Enchantée, Tang Ling. Merci.

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Audrey Hepburn se deu bem nessa.

Até mais!

Vestidas de Gauguin

Paul Gauguin (1848-1903), Two tahitian women, 1899

Paul Gauguin (1848-1903), Two Tahitian Women, 1899

Já era tempo de trazer Gauguin para pintar este vestido com as cores do que era, para ele, “a grande realidade fundamental”: a (sua) natureza. A relação dele com ela (esta fêmea que é a origem de todo mundo, de todo o mundo, sendo ela o mundo) não foi (apenas) a de um observador deslumbrado. Aos 35 anos – casado, pai de cinco filhos, artista nas horas vagas e frequentador dos círculos de arte de Paris -, tocado pela estética do Simbolismo, Gauguin embarca para sempre em uma viagem.

Por considerar que o estrangeiro se encontrava necessariamente no estrangeiro, Gauguin viveu durante anos em algumas ilhas do Pacífico, convivendo com os nativos e estabelecendo com eles uma relação de admiração. Traçou caminhos tortuosos, penosos. Em meio às agruras, seu olhar esteve atento às delicadezas, às mulheres e seus trejeitos, às suas formas, olhares e sutilezas. Descreveu assim a “Eva Tahitiana”: “muito sutil, muito sábia em sua ingenuidade” e, ao mesmo tempo, “capaz, ainda, de passear nua, sem vergonha”. Gauguin aponta aí para a relação da mulher com seu corpo, para a sensualidade que inclui e vai além do apelo que se faz ao olhar/corpo/desejo do outro.

O quadro Two Tahitian Women parece uma condensação dessa afirmação. Estão ali: os olhares voltados para o fora de campo do quadro, as frutas e flores como adereços para os corpos, os corpos como adereços da natureza, a cor da pele que reflete cores do fundo da pintura, as mãos sutilmente colocadas, os corpos posicionados de modos distintos (remetendo a poses de gregos e egípcios), os vestidos que escorrem e deixam ver os seios… Os vestidos. Pausa. Volto ao vestido, elemento cheio de força neste quadro, elemento que emoldura o sexo. Volto ao vestido, elemento que move esta escrita. Queria, antes de tudo, hoje, escrever sobre um vestido. Queria escrever um vestido e assim, vestir-me de contornos fluidos. Parti em busca de Gauguin pois o vestido, tal como o concebo, engancha o corpo à sua natureza (também a esta de Gauguin). O vestido confere contorno, fluidez e consistência ao corpo, a este corpo hoje tão virtual. Vestido: elemento que escorre, pelos corpos e pelas telas aos quais se mistura. Daí a sensualidade. O vestido é um véu sem fim, do sem fim. Bem, este é o começo. O começo de uma semana dedicada aos vestidos. O começo do fim de um ciclo. Mais, em breve.

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Os vestidos acima foram inspirados na obra de Paul Gauguin e fazem parte da coleção de Outono/2012 da grife italiana Dolce Gabbana.

Tempo de Moda
no Vestido de Letras

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Os dias têm estado iluminados, o inverno é claro. Pouquíssima humidade, muito vento, muito sol. Há algo na abundância de luz que dilui a noção do tempo: em que mês estamos?

Ainda que haja luz, cada um tem que se haver com o acinzentado que se instaura em cada corpo com o passar do tempo, com o passar da vida através dos olhos. É inevitável: o olhar e as palavras são coloridos pelo cinza da fresta que se vê – repetidas vezes – entre o que se imagina e que o se realiza. O tempo desbota. Mas o cinza tem sua beleza. E para que o cinza seja a marca de uma boa dose de realidade, pode-se recorrer aos ventos e sóis para alumbrar o dia (como propõe a poeta Ruth Silviano Brandão). Pode-se recorrer às cores, aos baldes de tinta, às peças coloridas, aos desenhos animados e histórias em quadrinhos, à poesia, à arte.

Em clima de Pop Art, resolvi criar, para esta sexta-feira ensolarada e pouco fria, este look marcado por rosa e azul – cores fortes e contrastantes. Geralmente, ao criar produções com cores, escolho duas que sejam distantes na paleta, mas que caiam bem juntas, assim, pela diferença. E na história toda fico brincando com elas. Arco-íris bicolor para um olhar ávido de tons vivos.

Criei esta produção virtual no portal Tempo de Moda. Lá você pode fazer um exercício interessante de criatividade e composição ao montar looks de acordo com a previsão do tempo para a sua cidade. Além disso, todas as peças podem ser adquiridas através do portal.

Bom fim de semana!

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Maquiagem inspirada nas histórias em quadrinhos e em obras de Roy Lichtenstein – por sua vez inspiradas nos comic books. Usa-se os Ben-Day dots – pontinhos espaçados que são um traço caraterístico da obra do artista. Ao encher suas obras desses grãos, Lichtenstein inspirou-se no aspecto estético das versões mais baratas das revistas em quadrinhos impressas à época.

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Maquiagem básica para uma quinta-feira de trabalho.

Roy Lichtenstein está na moda

Lichtenstein está super pop. Em 2013 foi inaugurada a exposição “LICHTENSTEIN: a Retrospective”, a primeira retrospectiva internacional da obra do artista. A exposição foi primeiramente apresentada no país de origem do artista, na National Gallery of Art (Washington, D.C.), em seguida passou pela Tate Modern (Londres) e agora se encontra no Centre George Pompidou (Paris), até 4 de novembro de 2013 (quem tiver a chance de ver, aproveite). Mais de cem (125) obras do artista integram a exposição e revelam fases pouco conhecidas de sua produção.

Nesta fonte bebem outros artistas. A moda permite parcerias bem sucedidas com o(s) estilo(s) Roy. Ao que parece, no entanto, os estilistas sempre se inspiram na Pop Art de Lichtenstein, explorando pouco as outras fases da obra do artista. De todo modo, os efeitos são interessantes, cheios de vida – em meio a temas bélicos.

Primeiramente, TOM FORD com ROY LICHTENSTEIN:

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E mais: na London Fashion Week 2013 apareceram repetidas vezes o contorno bem marcado, as cores, formas e temas explorados por Roy Lichtenstein:

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Roy Lichtenstein, Nude on beach, 1977
Michael Van Der Ham (esquerda, superior) & Osman (direita, inferior)

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Roy Lichtenstein, Meat, 1962
Christopher Kane

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Roy Lichtenstein, Baked potato, 1962
Vivienne Westwood, Red Label

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Roy Lichtenstein, Still life with goldfish, 1974
Fashion East, Claire Barrow

A pintura Nude on beach é incrível! E os peixinhos dourados deste último quadro?

Transposição da tela para o corpo. Ao olhar estas imagens, podemos pensar sobre possíveis métodos para transpor traços de obras que nos fisguem – pelo estilo – para o nosso vestir.

Até mais!

Fonte: http://www.tecnoartenews.com/

Pitty Braga:
moldura para o olhar

O movimento da Pop Art é marcado pela abundância de cores fortes, vivas, contrastantes. As moças (girls) de Roy Lichtenstein têm cabelos chanel, aparência de boneca. O artista deixou como traço característico de sua arte (pop) o emprego repetitivo de bolinhas, a apresentação de loiras de cabelos curtos, os grafismos, as onomatopeias explodindo na tela. Mas, se até o papa é pop, as morenas também podem ser. 

As obras de Roy Lichtenstein inspiram muitos por aí. A partir de um editorial da Vogue Japão clicado pelo fotógrafo Lacey, com maquiagem de Andrew Gallimore e styling de Beth Fenton, Pitty Braga fez uma produção (cabelo e maquiagem) com toques de Pop Art. Um vestido/enfeite para o rosto, que emoldura o olhar e faz com que realmente algo novo se produza no corpo através dos toques das mãos, dos pincéis, das cores… algo para além das aparências.

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mao

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costas

lateral

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O mais interessante de uma produção como esta é que ela é transitória. Tantos toques e retoques efêmeros. Mas algo resta no corpo, no olhar.

Seguem dados para contato da Pitty Braga:

Pitty Braga – Cabelo e Maquiagem
Facebook – Pitty Braga (clique aí!)
Instagran – pittybraga
email- pittybraga@live.com
Salão Jacques Janine – BH 
Rio Grande do Sul, 1280, Lourdes
33373337

Abraços,

Júlia

Pop Art:
O que exatamente torna os lares de hoje tão diferentes, tão atraentes?

Há uma ironia nessa pergunta, que intitula a obra/colagem de Richard Hamilton (datada de 1956), a qual se tornou um paradigma do movimento da Pop ArtUm movimento que expõe a massificação (em larga escala) operada pela cultura popular alimentada (ou melhor, super alimentada) pelo capitalismo. Reproduções em série, cópias de cópias, ícones do consumo, símbolos que se sustentam na lógica do “produto”. Esses eram temas tomados lúdica e ironicamente por artistas como Roy Lichtenstein e Andy Warhol, nas décadas de 50 e 60 (principalmente na Inglaterra e nos Estados Unidos), para escancarar que da lógica do “produto”, do “mercado” (consumo), da “reprodução” nem a arte escapa. O que os artistas fazem, então, é se apropriarem desta lógica para escancará-la/denunciá-la.

Esta semana o Vestido de Letras será invadido pela Pop Art. Começamos apresentando a colagem de Richard Hamilton, marco do início do movimento em questão:

O que torna os lares de hoje tão >>> Richard Hamilton (1956)

O que exatamente torna os lares de hoje tão diferentes, tão atraentes?, Richard Hamilton (1956)

O que precisamos “colar” em nossos lares, em nossos corpos, para sermos pop? Dá uma olhada nos blogs (como este?), no facebook e no Instagram para você ter idéias. Parece que a lógica é a mesma…

Mais uma inspiração, para começar o papo… Uma obra de Roy Lichtenstein cujo traço – que envolve a estética dos cartoons, o uso de onomatopéias e de imagens de mulheres loiras, cabelos chanel – vive sendo reproduzido até os dias de hoje (é tendência). O interessante é que a reprodução é a chave do movimento, que visa escancarar o vazio que o capitalismo potencializa.

Sleeping girl, Roy Lichtenstein (1964)

Sleeping girl, Roy Lichtenstein (1964)

Esta é a entrada. Logo logo tem mais.

Boa semana!

Júlia

Better than cheesecake

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Cheesecake é um doce deliciosamente estranho e familiar. O queijo confere um toque local (mineirinho) ao sabor, mas o doce é estrangeiro pelas suas origens. Marcas disso são as bolinhas que muitas vezes o recobrem: blueberry, cramberry, raspberry… hein? Mistura contrastante de efeito surreal: doce com sal, fruta com leite, texturas diversas. O cheesecake é um doce bem vestido.

O estilo pin-up – que data do fim do século XIX -, também é efeito de uma mistura interessante: sensualidade com doçura, força com leveza. A expressão better than cheesecake (melhor que cheesecake), muito empregada em elogios tecidos às pin-ups por volta de 1940/50, só pode dizer respeito a algo provocador dos sentidos. Por exemplo, uma mistura inusitada e linda: as marcas do estilo pin-up (lenços, cores vibrantes, penteados armados, maquiagem impecável) mescladas aos tons das peles negras. Isso, sim, pode (quem sabe) nos levar além da experiência sensorial proporcionada por um cheesecake. Com relação ao que nos proporciona um bom café com leite… aí depende… é com queijinho ou sem?

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Ah, mas precisamos considerar que há mãozadas (não pitadas) de machismo por trás dessa história que envolve as pin-ups. Elas eram modelos e atrizes que serviam de inspiração (erótica) para, dentre outros, os soldados americanos que serviam ao exército. Foi nesse contexto que elas, literalmente, bombaram. As fotos delas ficavam penduradas nas tendas dos acampamentos (daí o uso do termo pin-up, que significa pendurar). Ou seja, cerejinhas banhadas em sangue. Triste isso. As mulheres merecem mais. A humanidade também. Vamos catar os traços do estilo que essas beldades nos legaram e vamos além desta posição de objeto-símbolo sexual. Pin-up não precisa ser associado, necessariamente, a aspirador de pó, a qualquer utensílio doméstico, a uma fantasia de enfermeira, a uma parede de banheiro masculino, por aí vai… Os lencinhos e as cerejas precisam circular por outros espaços, de variadas formas, enfeitando os corpos que se identificarem com esses adereços.

Obrigada por acompanhar o blog!

Até!

Júlia

O traço de Pitty Braga

Pediu que  vestisse de uma fantasia. Ondas negras e pontiagudas sobre os olhos, cabelos com volume e momentos, um outro tempo, a delicadeza amarrada à força. Aquela que a reveste conseguiu levá-la lá. Está aí o resultado:

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 Outra possibilidade da mesma proposta (cabelo parcialmente solto):

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Este maxi-delineador é um encanto. Para que tirar?

Pitty consegue deixar um traço assim: firme, lindo. Nem preciso ficar falando muito, não é?!

Seguem dados para contato com a Pitty:

Pitty Braga – Cabelo e Maquiagem
Facebook – Pitty Braga (clique aí!)
Instagran – pittybraga
email- pittybraga@live.com
Salão Jacques Janine – BH 
Rio Grande do Sul, 1280, Lourdes
33373337

 

Abraços calorosos,

Júlia