Descontinuum continuum

Um vestido de letras, literalmente. Um vestido revestido de palavras. Elas estão lá, inscritas. O que se tem a fazer – como num jogo de criança – é criar as ligações, de uma a outra, continuamente, sempre descontinuadamente. Entre uma palavra e outra: pausa, branco, não-palavra. É preciso costurar o ar até ir ao encontro do próximo significante a ser fisgado. De uma palavra à outra, infinitamente, mantendo o começo prosseguindo, a roupa vai ganhando forma. O corpo vai escrevendo e sendo escrito. O simbólico fisga o real, em alguns pontos. Vestido-pele-letra.

Nosso vestido começa a ser moldado por outros, antes de tomarmos a palavra. Um dia, a linha passa pelas nossas mãos. O que escrever? Que pele se pode tecer?

Poderia haver imagem mais literal do Vestido de Letras?

Esta é mais uma obra de Julia Valle, estilista/artista pesquisadora (www.juliavalle.com). Do site da artista retiramos o seguinte texto sobre a obra:

“O Continuum é um projeto cross-media e internacional, buscando colaborações infindáveis entre pessoas criativas de todo o mundo, a fim de produzir idéias autênticas e sensações sensoriais múltiplas. Foi fundado por Maja Mehle (Eslovênia) e Julia Valle (Brasil) e teve sua primeira exposição em Ljubljana, Eslovenia, na galeria SQUAT. Apresentou peças de vestuário exclusivas, fotografadas por Aljosa Rebolj, vídeo por Amir Admoni e trilha sonora por Alex Drimonitis. Abaixo, algumas imagens do projeto e arquivos para download.

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A bela nas fotos é a artista.

Toda minha admiração pelo trabalho desta moça tão querida.

Julia Valle acaba de lançar sua nova coleção – Flyingglow. Amanhã posto fotos das peças.

Beijos e boa semana!

Júlia

A costura do invisível:
o efêmero também pode permanecer

Philosophy in the Bourdoir, René Magritte, 1967

Philosophy in the Bourdoir, René Magritte, 1967

Uma roupa veste um corpo. Um corpo veste uma roupa. E o que vem a ser um corpo (vivo)? Pedaço de matéria que pulsa, que se manifesta, que se dirige ao outro? Uma imagem limitada/bordejada que capturamos através dos sentidos? Um corpo é uma imagem? Um corpo é uma roupa? Onde termina um corpo e começa o resto do mundo? Como é que o resto do mundo toca o corpo?  Onde termina o corpo e começa a roupa? Como a roupa toca o corpo? Como a roupa toca o resto do mundo?

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Estas são questões que pulsam insistentemente. Mais ainda ao ver as imagens do último desfile da carreira do artista plástico e estilista brasileiro (neto de japoneses) Jum Nakao. Em 2004, na Semana de Moda de São Paulo (SPFW), Nakao apresenta, no desfile que encerra sua participação no evento, imagens que abrem uma brecha para o que usualmente não vê na moda: “A costura do invisível”. O artista apresenta uma coleção que promove um cruzamento entre o estilo das roupas do final do século XIX (passado) e bonecos playmobil (contemporâneo). Presentifica a questão da efemeridade. As “fadas playmobil” – como ele as denominou – vestem roupas delicadíssimas, feitas de papel vegetal e cortadas a laser – ou seja, materializações da leveza e da fragilidade. De longe, não se podia perceber qual era o material usado nas roupas, apenas que elas tinham um aspecto translúcido, como um véu – que convida o olhar a ver.

Ao final do desfile, ao entrarem em fila para encerrarem a performance, as modelos surpreenderam a platéia ao rasgarem e destruírem as roupas que vestiam, provocando um rompimento com o protocolo esperado. A des-costura, a presentificação da efemeridade. Um gesto que permite perceber a moda de outra forma, permite ver além da imagem e pensar/sentir o processo de produção da vestimenta e de costura dela com/no corpo. Afinal, destruída a roupa, o que resta? O resto é o conceito, uma elaboração simbólica que marca o corpo do estilista, das modelos, dos espectadores, cada um de uma forma.

“A constura do invisível” permite olhar para um ponto cego (o do cruzamento corpo-imagem-letra-roupa), em um universo (moda e mais…) fixado à imagem. Jum Nakao afirma que uma das frases que nortearam a criação deste desfile é a seguinte: “o efêmero também pode permanecer”. Sim, pode. Desde que a costura vá além do imaginário, criando um ponto de letra entre o corpo e o que ele veste no mundo, isto é, amarrando o real (o que pulsa), o imaginário (os contornos que criamos onde não há) e o simbólico (a linguagem que fisga o corpo). A elaboração simbólica e também no ato permite isso. A roupa se vai, mas a letra permanece. Valeu pela sua costura do invisível, Nakao! Pela sua letra, pelo deslocamento… Mesmo!

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Neste caso, vale a pena assistir o desfile em movimento:

A costura do nosso Vestido de Letras também busca tocar o invisível. Em ponto de letra.

Beijos,

Júlia