Look do Dia na Pintura:
vestido de boneca

Jenny McKean as Infanta, George Benjamin Lucks (____)

Jenny McKean as Infanta, George Benjamin Lucks (1867-1933)

Na noite de sábado a menina – esta, que escrevia dentre vestidinhos (leia neste post) – dormia acompanhada de um sorriso mais demorado quando sabia que o programa de domingo seria ir à Feira Hippie comprar roupas novas para as suas bonecas Barbie. Essas eram uma de suas paixões, tinham o poder de fazer disparar histórias do “para sempre” com as amigas e criavam uma abertura para um mundo imaginário onde os corpos das meninas se misturavam aos das bonecas. Os corpos das meninas se misturavam aos das mulheres – e isso era delicioso para a menina que tinha pressa de ser algo além.

A menina cuidava de sua coleção de bonecas com todo zelo do mundo e escolhia a dedo quem brincava com elas pois levava a brincadeira a sério. A caminho da feira, deixando o olho deitar e mirando a passagem rápida da cidade pelos vidros do carro – movimento embalado pela voz da mãe – a menina já ia sonhando e contando quais e quantos sapatinhos compraria, quais modelos de blusinhas gostaria de encontrar para vestir tal e tal boneca (ia inventando modelagens…), mas suspirava mesmo ao pensar nos vestidos, peças que sempre davam uma graça a mais aos corpos esbeltos das Barbies.

Ao chegar à feira, era conduzida pelas mãos da mãe que a agarrava com força e amor, tentando diminuir o risco de se perdessem na multidão. Depois de atravessar fileiras e mais fileiras de barracas, chegavam à parte da feira onde só se vendia brinquedos. E era lá que se encontravam as senhoras – sim, pelo que a menina lembra, quase sempre eram senhoras – que costuravam as roupas de suas bonecas, as suas roupas. A negociação começava pelo olhar. A menina olhava os olhos da vendedora e dali já extraia desejo ou não-desejo pelas roupas. Porque ela acreditava – e ainda acredita – que tudo começa no afeto/ideia – no olhar/corpo. Antes das roupas vem aquilo que as anima. É isso, antes de tudo, que um corpo veste. Naquela nogociação de olhares, vozes, gestos, a menina escolhia, antes das roupinhas, qual senhora queria para ser a autora das formas que levaria para casa. Escolhida a vendedora, passava a escutar o que esta lhe dizia a respeito do estilo das roupas, do corte, modelagem e costura. Com a ajuda da mãe, ia imaginando, misturando seu corpo aos das bonecas, pensando nas imagens que catava – com a ajuda do olhar da irmã mais velha – em revistas de moda, vitrines, na tv e pelas ruas, e ia escolhendo os sapatinhos, as saias, as blusas, os vestidinhos, as bolsas, formas… Que ecoariam dali em diante.

Este era um de seus programas prediletos. Preferia comprar roupas para as bonecas do que para ela mesma. Porque neste processo o que se dava era um enlaçamento, em ponto de letra, entre o seu corpo, o corpo da mãe, o da irmã, os das senhoras costureiras, os das bonecas e o da mulher que ela desejava ser.

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Essas lembranças infantis foram disparadas pelas imagens do desfile da coleção criada pelo estilista Fause Haten para a 35a Edição da São Paulo Fashion Week, a SPFW13/14. Haten é estilista, mas também é músico, ator e figurinista. Conjuga várias formas de arte nas formas que cria e, com isso, imprime uma letra única, musical e teatral, nas roupas. No desfile em questão, teve a brilhante idéia de acessar o infans que habita todos nós da forma mais linda possível – pelo menos no caso das meninas/meninos que brincaram de bonecas. Quando os espectadores dos desfile esperavam que entrariam modelos na passarela, lá vieram as marionetes. Sim, bonecas no lugar de modelos (pois é assim que funciona). As bonecas representavam modelos que o designer gostaria de ter na passarela e algumas que já haviam desfilado para a marca. As marionetes desfilaram vestidos suntuosos, trabalhados em cada detalhe, com cores e modelos bastante variados. Vestidos à la red carpet. Glamour, sonho, fantasia, desejo. Os vestidos costuraram, mais uma vez, o corpo das bonecas, aos das meninas-mulheres e ao do estilista (como acontecia, também, em meus domingos de Feira Hippe). Haten conseguiu dar forma a um universo encantador que nos habita e brincou com o tempo e as lembranças, acessando um ponto do corpo em que a linguagem é tão infantil e tão atual. Resultado: desfile memorável aplaudido de pé.

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Fause Haten com suas crias

Fause Haten com suas crias

Incrível, não?!

Conseguem identificar a Maria Rita (cantora) em meio às “modelos”?

Vamos brincar de boneca?

Beijos e boa semana!

Júlia

Obs: A Feira Hippie é uma enorme feira de artesanato (e outros) que acontece aos domingos, na Avenida Afonso Pena, em Belo Horizonte. Vale a pena conhecer!

15 thoughts on “Look do Dia na Pintura:
vestido de boneca

    • Ju,

      Que ótimo receber essa palavra como elogio ao post: “lindeza”! Adoro a palavra!
      Obrigada!
      Precisamos trocar costuras,
      Beijinhos,
      Ju

  1. Que lindo! Estou emocionada! Como me identifiquei com o texto e as imagens, acabei de fazer uma viagem dentro do meu coração à minha infância! Brinquei de boneca até os 15 anos e guardei todas as minhas bonecas e roupinhas e sapatinhos para minha filha, Irupê. Obrigada, Júlia, por proporcionar esses sentimentos tão puros e familiares. Bjim Gabi

    • Gabi,

      Seu comentário me deixou com nó na garganta. Bom sentir arrepio nessa troca de palavras, de lembranças, nos caminhos dos corações. Brincar de boneca é coisa de se sabe “de cor”, de cor-ação. Fiquei curiosa: como é brincar de boneca aos quinze anos, assim, um pouco mais velha? As brincadeiras têm outro sentido? Você brincava com as amigas nessa idade?
      Sério que você guardou tudo para a Irupê? Ela deve ter pirado! Sinal que esses objetos carregam mesmo muito afeto, afeto transmitido. Laço entre corpo de mãe e filha através das bonecas e seus adereços. Vivam os laços! Adorei seu comentário aqui, Gabi. Obrigada pela leitura, pelo seu olhar tão cuidadoso para o blog, mesmo tendo que cuidar de três crianças! Te admiro!
      Beijo,

      • Ei, Júlia! Brincava sozinha e criava todo imaginário e situações que vivia de transição para a adolescência, os conflitos, os amores, a auto afirmação. Foi muito importante pra mim essa vivência!
        Guardei e já dei a ela, tem pouco tempo, esse ano, ela fica muito encantada, principalmente porque ela acha incrível o cuidado e o carinho que eu tive de guardar. Ela brinca até pouco, acho que tem um pouco de medo por perceber que é algo tão sagrado. Vou incentivá-la mais. Sabe que a tia Ana tb tem umas bonecas guardadas? Depois vem cá pra vc ver! Bjocas

  2. Que delícia ler esse texto e viajar nos tempos de barbies e roupinhas da Feira Hippie!
    Eu na Feira Hippie, você na Feira Hippie, nós em Buenos Aires… tudo tão antigo e tão atual!

    • Carol,

      Eu já disse: a gente só não se conhecia, mas nossas histórias já eram cruzadas, enlaçadas. E, como já te escrevi, ao seu lado fica mais fácil ser adulto, porque a gente não precisa abrir mão das crianças que somos. Nem do cor de rosa! haha
      Beijos, fifi!

  3. Ontem vi as imagens do desfile. Achei impactante, original, delicado. Um post criativo e elegante sobre moda.
    Mas só hoje fui ler… Aí que a coisa pegou mesmo! Me emocionei. Acabei transportando os meus próprios afetos e lembranças para essa sua missa infantil, esses domingos deliciosos. A letra que enlaçava lá, também enlaça cá. Fiquei totalmente presa no seu cetim colorido, essa sua trama: escrita-laço-de-fita! Foi presente pro dia. Obrigada!
    Vou mostrar pro Conrado para ele ficar ainda mais orgulhoso do desenho vestido-boneca e por, de certa forma, vestir também o blog. (hoje ele está filmando… amanhã eu mostro)
    (Não deixe de mostrar para sua mãe e irmã!)

  4. Missa infantil?! Expressão genial. Porque era isso mesmo: ritualístico, simbólico, com culto ao corpo. Mas sem muita culpa pelas compras.
    Sinto nas suas palavras os seus afetos e o modo como sua letra toca a minha e vice-versa-verso. Suas palavras fisgam – pontiagudas, vão no ponto. És leitora atenta e ativa.
    Foi no ponto-letra: cetim é o meu tecido favorito. Tenho quase tara. Quero robe de cetim, blusa de cetim, fronha de cetim, baby doll de cetim (haha). Uma baranguice só. Baranguice delícia.
    Escrita-laço-de-fita. Pronto, da letra ao laço. Laço em ponto de letra. Fisgou. Pegou. Porque o laço envolve um movimento, uma dança. A escrita dança com cetim e enlaça. Virou conceito para mim. Pode crer que vai entrar no meu próximo projeto de pesquisa (nem que seja como norte)
    Que bom que o post foi um presente. Seus comentários sempre são! Sua presença mais.
    Mostra pro Conrado, sim. O véu é obra dele.
    Mostrei para minha mãe e minha irmã. Minha mãe se emocionou, me irmã disse que adorou. Minha mãe agora quer comentar aqui. Vamos torcer pra que ela consiga. haha
    Beijos!

  5. Júlia,

    Adorei esse seu post! Também voltei no tempo como as meninas disseram acima. Eu era/sou louca por bonecas. Especialmente barbies. Tenho todas guardadas até hoje. Lembrei-me com carinho dos momentos que vivi, das histórias que inventei e de como eu adorava trocar a roupa das bonecas. Gostava tanto, mais tanto, que cheguei a desenhar roupinhas para minha Mãe costurar para mim. =) E tinha uma barbie que era estilista, rs. Acho que foi nessa época que tomei gosto pelo ato de me vestir!

    • Xanda,

      Que alegria saber que você está acompanhando o blog!
      Que presença ilustre! 🙂
      Ah, nem me fala que você tem todas as suas Barbies guardadas até hoje. Às vezes queria ter as minhas para poder acessar essas lembranças de uma forma mais clara. Nem sei se conseguiria, mas fico desejando.
      Mantive as minhas 32 (sim, era um batalhão) guardadas em caixas – de forma que pudessem dormir e respirar confortavelmente – durante anos, até que decidi (com o incentivo de minha mãe), praticar o desapego e doá-las (junto com a casa delas) para uma amiga querida. Foi o desapego mais forte da minha vida, nenhum outro me afeta mais – tanto que vivo doando coisas.
      Que bom que o post abriu seu pensamento para essas lembranças tão preciosas.
      Agora, para tudo: você desenhou roupas para sua mãe costurar para as bonecas???? Tinha uma que era estilista??????
      Ah, este Vestido de Letras tem muito a ver com você! Preciso das suas idéias e do seu desejo para bordá-lo. Me ajuda?
      Vamos juntas cultivar esse gosto pelo ato de se vestir de afetos?
      Beijos, querida!

      • Ei Júlia,

        Nossa, ainda não consegui praticar esse desapego. Talvez se fosse para doar para alguém que conheço…Mas, não tive essa oportunidade ainda.
        Teve um tempo, até uns 12 anos de idade que eu falava que ia ser estilista, acredita? Mas, depois as coisas caminharam para outro lugar e eu não desenho tão bem quanto imaginava, rs.
        Vamos conversando mais e trocando ideias, sim! Parabéns pela sua iniciativa, acho que textos como esse suscitam um novo olhar de fato para a moda. E isso é bacana num universo onde tudo pode ser facilmente banalizado por uma série de razões que já conhecemos.
        Também sempre pensei, que o modo de vestir não é apenas uma necessidade nem, por outro lado, uma questão de aparência fútil. Gosto quando você coloca a relação do corpo como o primordial, porque faz sentido. O modo de vestir me parece também uma impressão da nossa identidade no corpo. Talvez uma das mais importantes…
        beijos!

        • Nossa, Xanda, estou impressionada com essa história do estilismo perpassando a sua história. Que legal! Bom saber desse seu interesse por algo que também me interessa. Você pode praticar o estilismo de outras formas. Até paralelamente, não?!
          Ah, o que você anda fazendo?
          Fiquei entusiasmada com seu comentário, com essa visão de que meus textos trazem um olhar diferente para a moda. Isso para mim é fundamental. Não quero entrar na onda da banalização (confesso que sempre me sinto na corda bamba), não gosto de banalidade com nada na vida. E acho mesmo que a moda precisa ser articulada ao corpo, à comunicação à arte e à discussão sobre identidade. O jeito como a gente escolhe se vestir é uma forma de se expressar no mundo, nas relações. A moda precisa ser trabalhada, envolver criação mesmo, pensamento, não é?
          Por isso, conto com você e suas idéias e experiências por aqui.
          Você pode praticar seu gosto pelo estilismo neste Vestido. Dá pra desenhar escrevendo.
          Beijos!

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